Eu já escrevi sobre o livro Guerra da Arte de Steven Pressfield[1] algumas vezes. E quase sempre eu faço uma pequena introdução comentando que não se trata do clássico A Arte da Guerra. Não é um livro para te ensinar estratégia militar. Mas te ensinar como vencer a si.
Dentre os conceitos, filosoficamente distribuídos e destrinchados, que o livro traz, o conceito de Resistência é pedra fundamental. É A força que nos impede de caminhar e atingir nossos objetivos. A falta de potência para agir e fazer o que precisa ser feito. Inclusive já escrevi um texto dedicado a essa obra explorando mais a Resistência.
Porém, é necessário explorarmos outro conceito que fica ali meio escondido já no "terceiro ato" do livro. É o conceito de ser (tornar-se) profissional. Pressfield demonstra o profissionalismo que almeja com o seguinte trecho:
"O Sol ainda não se levantou; faz frio; os campos estão encharcados. Arbustos arranham meus tornozelos, galhos de árvores batem no meu rosto. A colina é estafante, mas o que posso fazer? Colocar um pé à frente do outro e continuar subindo"
A partir desse excerto podemos construir algumas ponderações. A primeira delas é que as condições não estão propícias no cenário proposto. É muito cedo, pois o sol ainda não está de pé. A temperatura não está agradável e subentende-se que caminhar não é fácil, afinal os campos estão encharcados.
Entendemos ainda a partir dessa citação que é uma vegetação mais densa, pois arbustos arranham os tornozelos e galhos batem no rosto. Persistir não é confortável. Ir adiante não é aconselhável.
Já não bastando as intempéries, a colina a ser vencida é íngreme e estafante. E, apesar de todos os revezes, a conclusão que chega é que não há outra coisa a fazer. Mas continuar.
E o importante que a forma de continuar não se trata apenas de seguir, mas sim com um pé a frente do outro. Porque é dessa forma que se avança em um campo desconhecido e inóspito. Um pé de cada vez e gradativamente. E ele finaliza deixando claro que não há plano B, a não ser continuar subindo.
O conceito do profissional para Pressfield é aquele que não se importa com as condições, mas segue o plano e faz o que tem que ser feito. Todos os dias. Aqui entra a minha crítica ao "paradigma da motivação". O sentido não é buscar motivação, se sentir empolgado em fazer seu trabalho. O sentido maior é fazer seu trabalho todos os dias. E você não estará "motivado"(sic) todos os dias.
Durante meu mestrado tive contato com a obra Writing Your Dissertation in Fifteen Minutes a Day: A Guide to Starting, Revising, and Finishing Your Doctoral Thesis de Joan Bolker[2]. Em tradução livre é "Escreva sua dissertação 15 minutos por dia: um guia para começar, revisar e concluir sua tese de doutorado". Reli durante o doutorado e o que a autora prega é todos os dias abrir seu computador e trabalhar na sua tese. Nem que seja quinze minutos.
Isso é ser profissional. Isso é fazer o trabalho que precisa ser feito e não esperar estar motivado ou com vontade de escrever. Esta é a arma que temos, a única talvez, de vencer a Resistência. Trabalhar todos os dias. Seguir o plano.
Quando eu me sento para trabalhar nos meus livros, nas minhas aulas ou qualquer outra atividade que precisa ser feita, eu não me pergunto se estou feliz ou motivado para trabalhar. Eu apenas faço o meu trabalho. Ou tento, pois a Resistência é ardilosa. E tenta sempre me impedir.
A motivação que nos basta, ou deveria nos bastar é a Obra. Para Camus[3], "é importante imaginar Sísifo feliz". Caso você não se recorde, o mito de Sísifo narra a história de Sísifo, condenado pelos deuses a rolar uma enorme rocha morro acima, apenas para vê-la rolar de volta eternamente. E todos os dias ele reinicia seu trabalho. Porque dessa forma "Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Sua rocha é sua coisa."[3] Para o autor é a forma do homem se tornar "senhor dos seus dias", dono de sua liberdade.
Cada um tem sua "rocha" para rolar morro acima todos os dias. E esse ofício deveria bastar. Deveria ser suficiente. O significado está aqui e agora, no presente.
A ideia é abandonar a necessidade validação e tampouco de "motivação". O verdadeiro propósito, tomando emprestado novamente da filosofia hermética, é cumprir a Grande Obra[4].
E assim, imaginemos Sísifo feliz.
[1] Pressfield, S. (2005). A Guerra da Arte. Ediouro. ISBN 978-8500015342.
[2] Bolker, J. (1998). Writing Your Dissertation in Fifteen Minutes a Day: A Guide to Starting, Revising, and Finishing Your Doctoral Thesis. Holt Paperbacks. ISBN 978-0805048919.
[3] Camus, A. (2017). O Mito de Sísifo. BestBolso. ISBN 978-8577994141.
[4] Nota do Autor: A Grande Obra é um conceito tradicionalmente associado à alquimia e à filosofia hermética, representando a busca pela transformação e aperfeiçoamento tanto no sentido material quanto espiritual. No simbolismo, refere-se ao processo de transmutação do chumbo em ouro, uma metáfora para o autoconhecimento, o despertar da consciência e a realização do verdadeiro propósito de vida. Em um sentido mais amplo, pode ser interpretada como a missão única e individual, aquilo que dá significado à sua existência e que exige esforço, dedicação e superação dos desafios internos e externos.